sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Coma



Descrito,
(re) produz as extravagâncias.
Vida
real
Personagem
de fazer-pensar.

Palco
estranho.

O ator,
a televisão,
dependentes químicos.
Calígula,
os Mandamentos,
as últimas semanas...

O verbo contra a carne:

é a porção que toma
para si
a máxima
do ser que encarnou.

sábado, 13 de dezembro de 2008

... e foram parar na casa dos loucos.



Para Daniele Jardim, meu anjinho-irmã


Calor da tarde: o mais incômodo do dia. Andar por inúmeras lojas, sem se proteger debaixo de um pouco de sombra, nem tomar um delicioso refresco, era quase como cometer suicídio. O garotinho caminhou nos mesmos passos da mãe. Foram juntos descansar no interior de uma loja americana de doces, roupas e eletrônicos bem próxima ao centro da cidade. As pessoas, todas apressadas e preocupadas com a enorme fila de pagamentos que se formava no térreo do prédio, esbarravam umas nas outras, sem avisar ou pedir desculpas.
O garoto e sua mãe pisaram os degraus da escada rolante da loja, seguindo rumo ao departamento de brinquedos e vídeo, onde a mamãe logo cuidaria de averiguar os utensílios para o lar num tempo suficiente para que o garoto pudesse experimentar os brinquedos que sonhava em ter, mas que jamais poderia comprar. Os discos desorganizados nas estantes à esquerda, no departamento de áudio e imagem, também interessavam ao garoto: correu para ver o quarto disco do Led Zeppelin. Infelizmente, tudo era caro.

[É curioso observar que o mais incômodo acontecimento que há em nosso corpo humano é, talvez, a sensação de descontrole, e é impossível estar feliz quando se tem uma súbita e inadiável vontade de ir ao banheiro. Por mais que nos concentremos em fantasias sexuais para driblar a vontade de fazer o número 1, a dor é mais forte... e a bexiga, os rins e a uretra protestam veementemente: "Libertem-no! Libertem-no! Libertem-no! ...".]
O garoto se encontrava muito distante da mãe. Resolveu procurá-la para avisar aonde ia e, assim, tranqüilizá-la.

- Até que o banheiro dos homens está vazio... - o garoto falou para si mesmo - Mas que engraçado... eles todos estão entrando no banheiro feminino. Bando de malucos... ou tarados! Será que é apenas para funcionários?

Decidiu arriscar, antes que acontecesse uma explosão. Caminhou até à porta e leu o aviso: "Por favor, não utilizar o banheiro masculino. Estamos em teste de segurança”.

- Ahhhhhh, droga! Isso só pode ser gracinha do pessoal da loja... - irritado, disse o garoto - Mas eu vou morrer!

Parou, tentou segurar ao máximo aquele impulso orgânico e decidiu adentrar o palácio proibido, já esquecido do aviso amarelo pendurado na porta.
Girou a maçaneta, vagarosamente, e, como numa comédia de sessão da tarde, os alarmes logo exaltaram sua falta de discernimento para lidar com a estúpida decisão tomada. Um repentino medo o assombrou. Diante dos olhares acusadores, o garoto procurava desesperadamente encontrar sua mãe e fugir da cena do crime.

- Mas o que você fez? - a mãe indagou
- Nada! Eu só precisava ir ao banheiro, e aí um alarme tocou.
- Tá, vamos embora! Mas preciso levar esse presente. A gente desce e tenta pagar, mas só se a fila estiver pequena; se não, deixo lá. Ai, meu Deus...!

Os dois apressaram os passos e desceram as escadas, seguindo rapidamente para a fila, enquanto o alarme continuava a tocar tão alto e assustador quanto o ritmo do coração do menino. A boca aberta, o olhar vidrado, as mãos trêmulas e a vontade desesperada de sair o mais rápido possível do estabelecimento. A fila parecia maior ainda, aos olhos do garoto, como um novo tipo de corredor da morte interminável. Para uma criança assustada como ele, o simples girar de uma maçaneta e o soar de um alarme de segurança seriam suficientes para prendê-lo pelo resto da vida. O garoto só conseguia imaginar uma cara endiabrada de um juiz muito gordo e de barba grisalha, voltando-se contra sua pequenice, e gritando: "Culpado!”.
Os trinta segundos que se passaram logo depois da visão afligiram seu ser. A mãe pôs a xícara colorida no caixa, observou o preço da caneca, esperou a nota fiscal sair e procurou os dois reais e noventa e nove centavos guardados na bolsa (universo feminino). Absolutamente apavorado com aquele caos, o garoto arrancou uma cédula de cinco, puxou o braço direito de sua mamãe, olhou para a funcionária e disse:

- Pode guardar o troco!

Caminharam aproximadamente dez metros rumo à saída principal da loja, logo depois seguindo para o ponto de ônibus mais próximo. Ao longe, duas viaturas policiais e um carro-forte da empresa de segurança da loja chegaram para conter os criminosos. Mais aliviado, os dois conversaram sobre o caso:

- Nossa... que susto. Ainda bem, passou. - disse a mamãe
- Aiai... e eu só precisava fazer um xixizinho...
- ...
- ...
- Hahahaha
- Hahahaha

Depois de toda bagunça terminada e já dentro do ônibus, de volta para casa, veio-lhe um pensamento irrisório:
"Só poderia mesmo se chamar Rua do Hospício".

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Os animaizinhos subiram de dois em dois...




Para Suhelen Aragão, com todo meu afeto angelical



[A data natalina parece ter mesmo sua mágica. As pessoas, contentes demais, distribuem presentes, repartem felicidade com os familiares, doam roupas e comida aos desabrigados... Sobra até um tempinho para desejar feliz natal a todo mundo, inclusive aos desafetos.
Ah, o Natal... Que data especial! Somente uma comemoração tão sensível para aguçar o nosso gosto]

O garotinho percebeu muitíssimo bem que o problema não se encontrava na festa de aniversário do menino Jesus.

- O problema está nas pessoas gostarem do papai noel, isso sim - sempre dizia, inconformado - Mas o que há com essa gente, afinal?

Mesmo contra a sua vontade, durante a última semana pré-natalina, a sua mamãe e ele foram ao centro da capital comprar presentes para a festa dos amigos secretos. Para ele não havia nenhuma graça. A cidade plantada no mesmo lugar de antes, cheirando à água fétida e fumaça, com as pessoas de quase sempre caminhando de um canto a outro em espaços apertados. Era uma visão do inferno. Quente e amargo inferno.
Em cada loja que passavam era possível ver uma árvore plástica de natal rodeada por adereços, músicas saindo de harpinhas eletrônicas em gravações muito antigas, vendedoras atraentes caracterizadas de ajudantes de Papai Noel e vários cartazes com promoções imperdíveis e magníficas parcelas que poderiam ser pagas apenas após o Carnaval. Andaram aproximadamente duzentos metros, trezentos metros, um quilômetro... Nada o garoto podia fazer... senão esperar e esperar, cansado, pela próxima escolha da sua mamãe. "Um pano de prato ou um porta-copos?", "Boneco ou carrinho?", "Sapatos escuros ou claros?”.

Tudo lhe parecia irremediável. Até que, como se tivesse pousado para fazer um rápido pit-stop, apareceu bem no meio da Rua da Imperatriz um enorme trenó, e junto com ele um bom velhinho simpático que logo saiu conquistando a criançada.

- Venham, venham! Ho ho ho!

Uma multidão logo se fez em volta do carro vermelho. O papai noel número 2.669 ou 4.890 (e quem sabe quantos são afinal) bradou, bonachão, mais uma vez: - Venham, venham! Ho ho ho!

O garoto, tranquilo e ardiloso, resolveu investir seriamente em seu propósito demoníaco de aprontar travessuras com o velho. Sorrisos safados e mãos que ele alisava satanicamente; e os animaizinhos subiram de dois em dois.... Cada criança com mais uma ao lado, criteriosamente separadas por sexo, tamanho e idade.

Ele jamais acreditou no mito. Desde pequeno, sabia que se tratava de um senhor profissional contratado para o serviço, e que não era sequer um substituto do original... pois o original jamais havia existido. Mas depois de um dia nervoso, por que não rechear os bolsos com confeitos de segunda e ainda pedir um presente especial de Natal? Não custaria nada "entrar naquela festa boboca de crianças tão crédulas", pensava ele.
O alvoroço era enorme: para cada moleque que se aproximava do velho, um grito do papai ou da mamãe pedindo para que sentasse no colo do bom velhinho, fizesse o pedido e sorrisse para mais uma foto.

- Ai, um primor! - disse uma mãe eufórica, enquanto sua filhinha de dez subia as escadas da arca de Noel, pronta para receber toda a luz mágica e pura do Natal.

Uma outra criança pediu: - Eu quero uma bicicleta, Noel!

- Uma bola...!
- Uma boneca, Papai Noel!
E, a cada menino ou menina que seguia adiante, o garoto malvado chegava mais perto. Já no carro, um garoto mais novo que ele tomou posição e adiantou-se, correndo para os abraços do velho. Passou pouco mais que um minuto escolhendo o pedido, sorriu para a câmera, como deveria fazer, e deu um abraço muito gostoso no homem. Desceu correndo as escadas, e foi-se.
O garoto repensou o plano. Talvez porque lhe tivesse entrado no peito o germe que encanta cada criança que já ouviu falar em Papai Noel desde cedo. Talvez por remorso de querer machucar um homem que nem sequer era responsável por nada...

Sentou-se direitinho em cima do velho, pediu logo todos os doces e saiu de fininho, dando a entender que havia sido por acidente o chute no saco do papai Noel. O bom velhinho gritou como nunca talvez tivesse gritado, proferiu todos os palavrões possíveis e inimagináveis, assustando os papais, as mamães e causando choro na criançada.

- O Papai Noel é mau!
- Feio!

Ninguém reparou o motivo, e o garoto desceu contente, pronto para aventurar-se de novo com as compras e a mamãe. Seu sorriso sarcástico no canto da boca realçava sua felicidade natalina.

- Estranho... Você nunca gostou disso! Nunca se convenceu. Por que foi até lá?! - perguntou a mamãe.
- Ah, foi só vontade. Eu queria ver como era um Papai Noel de perto. Mas eu continuo achando que ele é muito mau... A senhora viu aquilo??
- Ai, minha nossa! Vamos embora daqui! Que coisa mais horrível todo aquele palavrão...

Fizeram uma pausa para o lanche. Ao fundo, a polícia tentava conter um barbudo furioso, naquele lindo dia de Natal.