terça-feira, 25 de novembro de 2008

Um anjo com os pés descalços




Para Juliana Carvalho


Assim que pôde fazer a curva da primeira esquina, o homem vestido todo de branco, com os pés descalços, entrou no ônibus, pagou sua passagem e sentou-se junto comigo na parte de trás da condução. O dia estava claro e aparentemente perfeito, com sombras por todos os cantos, céu limpo de nuvens, todo azul, e de temperatura agradável.
Algo no perfil daquele senhor alto, esguio, me fazia entender que ele era de bom nível cultural. Pareceu-me bastante simpático.
Logo que sentamos juntos, me ofereceu um confeito de mel e algumas páginas de leitura. O livro era carismático: O Castelo, de Kafka. O senhor alvo (como em minha memória foi registrado) estava no sétimo capítulo da obra inacabada. Pouco exigente, preferiu comentar que simpatizava com obras inacabadas por simplesmente oferecerem um desafio.

- Pouco me importa o final. Mas, confesso, é bem melhor quando nos permitem imaginar o que talvez houvesse sido. E você? - perguntou.
- Não tenho uma opinião formada. Mas eu gosto de livros, filmes, telas... onde eu possa me ver. Apenas. O sentimento é fundamental.

Arregalou os olhos e disse:
- Ah, sim. Quando não sentimos, estamos mortos. – ele me disse, com ar irônico.

Ele ria de uma maneira pouco agradável. Não por soar deselegante, nem tão pouco ser de um jeito descontrolado e pouco educado. Ria de um jeito irônico e dolorido.
O senhor alvo parou o riso abruptamente, contemplou uma paisagem qualquer fora do ônibus e tossiu de leve. Tentou esconder a dor. Assim, sem querer, ele me revelou o seu mal-estar, e eu pude fazer uma suposição sobre o que se passava dentro dele.

- O senhor fuma ou já fumou, não é? - discretamente, perguntei.
- Pode estar certo disso. Eu disse "pode" - ele me respondeu, ao passo que movia para o alto um dos seus longos dedos. Então tive uma ligeira sensação de que o senhor alvo tivesse participado, em outros tempos, das campanhas a favor da democracia.
Sem mais uma palavra, passamos os dois cerca de vinte minutos calados, inertes, até que o senhor alvo se levantasse, me pedisse licença e passasse por mim com toda aquela sua majestosa veste branca. Retirou o terno claro que trajava para que pudesse se livrar de um incômodo calor que já fazia naquelas horas, deixando à mostra uma palavra estampada na região mais alta de sua camiseta clara: “Eu”.
Desceu a escadaria e tomou um rumo incerto.

No segundo dia, por uma coincidência, talvez, o senhor alvo e eu sentamos novamente no mesmo banco, cada um em suas exatas posições: ele, voltado para a janela; eu, voltado para o interior do ônibus. Ele já não vestia as roupas da tarde anterior. Estava melhor, embora mantivesse o colorido branco: calças em mais puro linho, uma gravata sedosa e um terno de ótima qualidade.
Observou que eu estava ao seu lado e quis me cumprimentar:

- Olá!
- Olá, senhor. Tudo melhor? – eu disse.
- Tudo melhor, rapaz. Ganhei um bom prêmio jogando no bicho. É que sonhei com um veado - falou mais alto que de costume. E completou, rindo bastante: - Mas não venha me estranhando por causa disso, hein! Olha lá!
- Longe de mim, senhor. Longe de mim... – eu respondi, gostando ainda mais da piada - Ah, digo, longe de mim pensar assim a seu respeito.
- Uhum. Exatamente, rapaz. Exatamente. - respondeu, todo risonho e contente.

A nossa pequena conversa seguiu tão simplesmente, que ao olhar para uma parte dos passageiros à nossa frente era possível notar que, na verdade, conversávamos em três ou mais. Durante esse tempo, uma senhora baixinha e animada, um tipo muito peculiar e semelhante à minha falecida avó, soltava uma risada gostosa que soava como uma cuíca em desfile de escola de samba do Rio. Ela sempre voltava o rosto em nossa direção e continuava sorrindo.

O que me chamou a atenção foi que senhor alvo estava mesmo melhor do que no primeiro dia; ria sem dificuldade e tinha uma paz de espírito transparente no rosto. Perto de seu ponto de chegada, falou comigo sobre sua neta mais nova: uma mocinha que iria completar seus oito anos.

- Pensei sinceramente em dar um presente bem bonito para ela. Com oito anos, o que se pensa em ganhar, hoje em dia?
- Bem - pensei com bastante cuidado - para crianças, as coisas sempre giram em torno de brinquedos. De todos os tipos de presente, é o mais agradável.
- Ah...
- Mas acho mesmo que o senhor deveria dar algo para recordar sempre. Um retrato seu, quem sabe.

O senhor alvo silenciou, levantou-se, pediu licença, livrou-se do terno branco e saiu.
Virou-se para procurar uma saída entre a pequena multidão formada no lado de fora, próxima ao ponto de ônibus e mostrou para quem pudesse ver, na parte de baixo da camiseta clara, uma outra palavra escrita: “Apenas”.

No terceiro dia, antes que o senhor alvo sentasse ao meu lado, comecei a pensar na mensagem que ele desejava transmitir através de cada uma de suas camisas. “Eu, apenas”... Aquilo tudo fazia pouco sentido para mim, mesmo que as duas palavras se complementassem. Sendo assim, Eu e Apenas formaram, para mim, uma frase enigmática seguida por três intrigantes pontinhos que me causavam agonia e uma curiosidade quase insaciável.
Após breve silêncio meu, eis que o senhor alvo reaparece. Mas estávamos muito distantes, embora mutuamente visíveis. A condução achava-se repleta de passageiros, tantos que nem era possível trocar de assento com a moça bonita sentada ao lado do carismático senhor sem que, para isso, se perdesse o antigo lugar. Eu tinha algo a lhe dizer, principalmente sobre as mensagens.
O tempo continuou a correr e, em exatos vinte minutos, o cidadão colocou-se de pé, pediu licença, caminhou rumo à saída, retirou o seu terno religiosamente, e pôs-se para fora do ônibus; mas não sem antes exibir mais uma camiseta branca, onde estava estampada outra mensagem: “Sei”.
Quando perdi o homem de vista, somente segui o meu itinerário ainda pensando no que pudesse ser.

No dia seguinte, o senhor misterioso estava de novo sentado no fundo do ônibus, lendo mais um capítulo de O Castelo enquanto pensava, com ar de filósofo. Passei tempo suficiente com ele para perceber que sempre erguia rápido a sobrancelha direita quando desejava ponderar sobre um assunto.
Mantivemos distância, fingindo não ter ciência da presença de cada um. Eu, sentado também ao fundo, na ponta esquerda; ele, similar, porém à direita.
Vi uma pasta de cor branca posta próxima à perna esquerda do senhor alvo, que não se incomodava com o balançar do ônibus cheio: continuava a leitura, mudando delicadamente de página, sem se preocupar com coisa alguma.
Antes de se levantar, terminou de ler a última página do último capítulo de Kafka e, depois, cerrou o livro. Pediu licença à pessoa que estava ao seu lado e sorriu balançando a cabeça, em sinal de não.
A pasta havia ficado. Antes, pude ver a sua camiseta com uma última palavra pintada. Enquanto o senhor alvo acenava para mim e confundia-se no meio da multidão, a última mensagem que consegui ler rapidamente foi: “Que”.

No horário entre o meio-dia e duas da tarde do dia seguinte, não tive notícias daquele senhor. Por aproximadamente duas semanas seguidas, estava completamente desaparecido. Mesmo sabendo que poderia abrir a pasta e ver o que lá estava, tive dúvidas sobre a decisão mais apropriada a tomar. Porém, já estava totalmente fora de questão manter minha conduta e esquecer a pasta. Resolvi abrir.
Dentro, uma carta:

“Caro rapaz,

Nesses poucos dias que convivemos juntos, você foi o meu pequeno e sincero alívio para o mal que me persegue desde o começo dos meus dias.
A vida é um tanto vazia quando não se têm propósitos, é verdade. Mas a pior verdade é quando não se fez nada por si além de noites e noites mal dormidas e boemia avassaladora. Encher o organismo de uma bebida barata e ardente parece retirar o vazio que se põe dentro de nós... Mas é uma absurda mentira: a única coisa que o álcool me fez foi proporcionar mais agonia de existir.
Não se pode culpar uma garrafa de cana pelos erros cometidos, próprios ou alheios, mas se pode culpar a si mesmo pela tragédia da vida, pensar a respeito de tudo até definhar e morrer... Ou compreender que o sentido de tudo é não ser e, simultaneamente, ser, com todos os gostos que se há de saborear nesse nosso trajeto.
Eu provei do amargo, com todos os bofetes que tomei na cara; provei do doce, nos dias acalorados, quando me deram uns poucos sonhos com que pudesse me aquecer. Provei do sal de suor e lágrimas. E para que eu pudesse sobreviver, comi e bebi de um pouco de tudo que sai ou entra em um corpo humano. Essa minha experiência de vida se resumiu a muitas drogas, delírios e cuspe.
Agora que te escrevo, sinto-me despreparado para cometer o “deslize fatal” e fico pensando “Como pode ser isso? : assistir a uma pessoa como outra qualquer em total necessidade e não sentir nenhum pingo de solidariedade... e passar bem longe, só para não ver. Isso só me lembra a hipocrisia do mundo, pois foram poucas as mãos a mim estendidas, e praticamente inúmeros os dedos que me apontaram na cara.
Mas acho que o desastre que eu e todos os meus amigos passamos nas ruas foi a maior infelicidade de todas. Chagas por todos os lados, calor insuportável... Quando se tinha sede, arranjava-se fácil um copo muito cheio de cachaça; mas, raramente, água limpa para saciar a sede. A educação que me deram veio das ruas, veio de todo resto de papéis e jornais espalhados nas praças. Eu lia de tudo, desde um panfleto de vendas até os restos do “jornal latino-americano mais antigo em circulação”. A fome que meus amigos e eu passávamos era bastante incômoda, mas tínhamos ainda força para dividir os restos. Sim, é preciso bastante força para dividir o pouco que se tem.
Aproveitei o meu conhecimento em escrita para pedir ajuda aos “órgãos”: não tive resposta. Somente pessoas com sincera bondade nos fizeram algo de melhor. E não falo absolutamente de alimentos ou roupas, mas também de afeto e um pouco de atenção respeitosa.
Ouço um monte de pessoas dizerem que apenas comida não soluciona; como também ouço que apenas palavras não curam um desalento assim. Nós que moramos em “lugar nenhum” esperamos os dois, e é preciso que se dê pelo menos um bocado de cidadania a quem nada tem. O nosso desejo inclui felicidade, realização... sonhos. Poder curtir a maravilha de uma loja de livros, lamber um bom sorvete em dia quente, assistir a uma bela partida de futebol, entrar numa doceria e “comprar” um delicioso chocolate, ter a sorte de jogar e faturar um bingo! Fazer coisas normais, sem nenhum tipo de suspeita e discriminação. Obter espaço...
”Respirar um pouco” não é vadiagem, é só o que uma pessoa como eu também deseja na vida.
Minha família é de rua: filhos e netos. Perdi a minha carinhosa Lígia, há três anos ou quatro.
Estou grato pelas roupas que até hoje me deram, pelo pão que comigo partiram e pelas palavras de mansidão que me fizeram não desesperar.
Meu caro rapaz, você me lembra muito o meu melhor amigo da infância. Portanto, foi ótimo estar com você naqueles dias, no ônibus. Resolvi ter meus últimos dias desfrutando um pouco da dignidade que me foi roubada. Por isso troquei meus últimos centavos de esmola por uma barba bem feita, um terno branco quase novinho. Apenas não pude arranjar os sapatos. Fiquei descalço.
Achei na rua o tal livro do Kafka: foi maravilhoso lê-lo. Ao término, fiquei com a impressão de que havia também alguma coisa “inacabada” feita para mim, numa convicção de que a minha história ainda teria uma parte seguinte, ainda por fazer.
Recebi camisetas que, outrora, serviram para uma apresentação de colégio. Meu singelo saber me fez pensar que se tratava de uma frase de Pitágoras...
Não tenho mais tinta para continuar a te escrever, mas devo dizer, aproveitando o momento, somente mais uma coisa: “Eu apenas sei que...” foi agradável ter te conhecido. Muito Obrigado.



Dois dias depois, fiquei sabendo exatamente onde o senhor alvo morava. Entreguei à sua neta mais nova aquela pasta branca e pus fogo na carta original, como um sinal de pesar pelo falecimento do homem.
Seu nome era Romeu, e “Eu apenas sei que” ele agora significa uma outra parte de mim...

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